sexta-feira, 20 de março de 2015

Cancro e Terapia da Fala

"Gostaria em primeiro lugar de dar os parabéns à comissão organizadora deste Congresso, organizar um congresso é uma tarefa árdua! Queria em segundo lugar cumprimentar as pessoas desta mesa, que tive o privilégio de ouvir falar.
Quando me pediram para vir a este congresso, pediram-me para vir na qualidade de professora, o que, sendo legítimo para quem convida, deita por terra as expectativas de quem me ouve. Creio que a alma tem bolsos e que os alunos nos guardam lá. Às vezes, quando procuram as chaves do carro, somos as primeiras coisas que eles encontram. E se isto diz muito sobre a natureza das nossas relações coloca-me de imediato como a pessoa menos interessante desta mesa.


A pergunta, se bem me lembro era: como é que um terapeuta gere as expectativas do outro.


A resposta tentará apenas contribuir para a reformulação da pergunta. E a pergunta é um complexo problema: eu, o outro, a doença que o outro tem, nós realmente e as nossas expectativas.


Quando eu me formei, os terapeutas eram suprassumos em comunicação! Verdade verdadeira: quando me formei os terapeutas da fala para mim eram excelentes em tudo! Mas na altura em que eu me formei, os terapeutas eram capazes de se distinguir de si próprios enquanto pessoas e tinham a capacidade de deixar-se a si e aos seus problemas à porta.


Esta foi a primeira parte do problema com que lidei: eu! E era um “eu” fantástico esse “eu” que acabou o curso. Se me tivessem pedido que classificasse as minhas competências comunicativas à data em que terminei o curso, ter-me-ia atribuído de muito bom para cima. A pergunta óbvia era: mas és boa a comunicar com quem? Na altura não interessava: eu tinha aprendido sobre comunicação e tinha um papel que o atestava. Descobri, muito rapidamente que, para super-terapeuta, eu não conseguia deixar-me à porta, e sentia, paradoxalmente, para alguém formado em comunicação, que me faltavam conhecimentos e mestria nesta área. Tive muitas angústias e num dia qualquer nasci: uma terapeuta humana de carne e osso.


A primeira vez que soube o que significava a palavra cancro foi pela minha mãe. Ela teve três cancros, dois antes de eu chegar à faculdade e o último já depois de eu terminar o curso. Na data em que em que a minha mãe me falou de cancro ele veio descrito com tanto carinho e cuidado, que, para mim, cancro era uma doença, muito perigosa (embora eu não soubesse o que queriam dizer com isso, exatamente), que te podia deixar mal como uma gastroenterite e de cama como uma gripe, mas sem nariz entupido embora às vezes visse a minha mãe a fungar.


A segunda vez que eu ouvi falar de cancro era já um bocadinho mais velha, cancro era uma doença que te podia deixar de cama, mesmo que a cara sorrisse sempre, e que não te deixava ter muita força para fazer as atividades do dia-a-dia. Cada um de nós (eu a minha irmã, a minha mãe e o meu pai) contribuía de algum modo para o bem comum, mas não falávamos do cancro. Tudo o que eu queria era que a minha mãe ficasse bem. Dizer alto a palavra era mau, mas não sabia porquê.


O cancro da minha mãe provocava-me, nessa idade, dois sentimentos totalmente opostos, raiva e medo.


A terceira vez que ouvi falar de cancro foi na faculdade. A descrição apareceu sob a forma de números, esta era e é a doença mais devastadora em todo o mundo. Eram horas de descrição de uma doença sem necessidade de falar da pessoa, do que ela sentia, do que ela pensava, do que ela…. Tínhamos atingido o nível máximo de abstração. Quebrado apenas, pontualmente, por uma ou outra referência a coisas soltas, como a noção de luto, na disciplina de Psicologia (muito ligada à noção de morte, menos mas ainda ligado à perda de uma capacidade e totalmente ausente para a perda de um estatuto ou condição, como a condição de saúde). Eu não sabia que as pessoas que veem a sua condição de saúde ameaçada entravam em luto…


Fui para estágio e vi as pessoas. Quer dizer, elas estavam lá, mas, honestamente, eu não as via. Interessava-me, fiel herdeira do positivismo de Descartes, sobretudo a componente física, as doenças. Recapitulava para mim o que um terapeuta deveria fazer, desde a anamnese até à intervenção. Até que um dia uma das pessoas à minha frente começou a chorar. Lembro-me da enorme aflição que senti. Demorei uns breves segundos a reagir. Com muita vergonha, partilho convosco o que me veio à cabeça: na faculdade, ninguém me tinha dito o que fazer quando uma pessoa chora. Literalmente. Como é que eu me devia comportar sem atentar contra os super-terapeutas? E porque é que aquele senhor estava a chorar? A segunda coisa que pensei foi, se eu não fizer as coisas que tenho para fazer o meu estágio fica em causa. Finalmente a terceira coisa que eu pensei foi a que me fez reagir: ele está a chorar porque está a sofrer.  E quando consegui dizer isto para mim, a minha mão, tocou o braço daquele homem. Não lhe consegui dizer nada nesse momento. Quando o choro começou a diminuir foquei-nos no que podíamos fazer e a sessão prosseguiu. Ao longo do estágio permaneci ao lado de Descartes mas tinha-se aberto uma janela obscura. Do outro lado havia uma coisa que eu era totalmente capaz de reconhecer em mim, na minha mãe e até na minha família, as emoções, mas nos doentes pareciam areias movediças capazes de pôr em causa o meu trabalho.


O cancro coloca-nos a morte diante dos olhos. Foi a perceção mais evidente e terrífica no terceiro e último cancro da minha mãe. Um cancro na tiroide, removido cirurgicamente, da qual resultou uma paralisia da prega vocal. Para além desses resultados clínicos de maior evidencia, este cancro humanizou-me, permitiu-me discordar abertamente com Descartes ou, se quiserem, discordar que a mente se separa do corpo sem que se perca objetividade. Perde-se toda a objetividade quando o centro deixa de ser a pessoa. Perde-se toda a identidade quando o afeto é retirado desta nossa profissão. E perde-se a noção da realidade quando nos deixamos seguir pelas abstrações puras, que nos permitem falar durante horas de uma doença, sem falar da pessoa ou perdendo até a capacidade de fazer uma coisa muito muito básica que fazíamos todos em crianças: a capacidade de nos solidarizarmos a quem sofre e de reagirmos a esse sofrimento.


Quando há uns meses atrás me pediram para vir falar sobre a gestão de expectativas, uma parte de mim reagiu ao nome da comunicação.


1.       A evolução dos paradigmas de saúde determinou que o terapeuta é um co-construtor na equipa; Não lhe cabe o direito de determinar de que tipo devem ser as expectativas da pessoa que está à sua frente ou ajuizar sobre a nível de realismo nela contidos. Quer isto dizer que ele já largou há alguns anos esse falso poder que lhe permitia ditar as regras num jogo para o qual ele é agora convidado a entrar;


2.      Apesar do cancro abalar as suas vidas, os estudos demonstram de forma consistente que, para além de receberem o melhor tratamento possível, as pessoas com cancro querem ser tratadas com dignidade e respeito, querem ser ouvidas para a tomada de decisão sobre o seu tratamento e cuidados. A maioria das pessoas procura informações pormenorizadas acerca da sua condição, possibilidades de tratamento e serviços existentes. A maioria das pessoas valoriza muitíssimo boas capacidades de comunicação frente a frente. As pessoas esperam que os serviços sejam de grande qualidade e que estejam bem coordenados. Em caso de necessidade esperam ter um excelente controlo dos sintomas e apoio psicológico, social e espiritual. Esperam ter a oportunidade de escolher o sítio onde querem morrer, muito frequentemente a sua casa. Querem ver garantido o suporte às suas famílias e cuidadores.


3.      A comunicação é a forma pela qual partilhamos informações, opiniões, expectativas, influenciamos e somos influenciados pelos outros. Boas capacidades de comunicação aberta, direta são fundamentais. A formação em comunicação é comum a vários cursos, mas o apoio especializado determina que reconheçamos que a formação de base não chega para uma intervenção ajustada às necessidades da pessoa com cancro e da sua família. Estarmos em diferentes pontos face a um perfil de comunicação tido como ótimo junto de pessoas com cancro, não faz de nós maus terapeutas. Faz de nós conscientes de que a pessoa com cancro tem direito a uma intervenção que é dirigida a ela, à sua família e à preocupação de ambos; Faz de nós conscientes de que, enquanto membros de uma equipa, temos responsabilidades connosco, e essa responsabilidade implica capacidades de auto e hetero-análise e a procura de respostas que vão ao encontro das necessidades diferentes e únicas, que temos, face a quaisquer outros membros da equipa..


4.       A prioridade de cada família é que a condição de saúde possa vigorar. A ação direta junto da pessoa com cancro tem que valorizar, acarinhar e envolver o papel difícil, ainda não totalmente reconhecido e relegado para segundo plano, das famílias às quais pertencem. Ser pai de uma criança com cancro ser marido, mulher, filha ou amigo de alguém com cancro não inspira ainda a mesma solidariedade. Socialmente chegaremos ao momento em que vamos conseguir apoiar a preocupação da família em prestar todo o apoio ao seu familiar, sem que os seus elementos abdiquem física, emocional e economicamente de si próprios. Talvez essa seja uma expectativa de todos.


5.       As evoluções no campo da oncologia permitem falar de coisas impensáveis há bem pouco tempo: manutenção de atividades e participação da pessoa que vive com cancro, a qualidade de vida das pessoas que sobreviveram a um cancro, etc. Estas evoluções obrigam os terapeutas a serem elementos de equipa (in)formados, ativos e movidos por uma alma (ou anima). Uma alma que partilhamos com os outros, uma anima mundi. Talvez o impensável povoe as expectativas de todos, face a esta doença.


6.       E, por fim…Ninguém luta se não tiver um sonho. Se o contexto da doença determina que num dado momento todos respondam a um desafio, então que seja por um sonho. Sem sonhos não à matéria-prima com que se construa a realidade. E um sonho é uma expectativa humana razoável.


No final de uma longa explicação sobre o que é a morte e o que acontece quando as pessoas morrem, perguntaram a uma criança se tinha percebido o que lhe tinham dito e a criança respondeu “Acho que percebi tudo menos uma coisa, o meu corpo vai para a terra, a minha alma vai para o céu, mas e eu vou para onde?”.


Voltamos ao ponto de partida: qual era mesmo o nome da comunicação?
             Obrigada pela vossa atenção."


           Comunicação apresentada no  II Congresso Anual de Saúde da ESSUA“A Abordagem Multidisciplinar à Pessoa com Cancro” Universidade de Aveiro, 2011

Sem comentários:

Enviar um comentário